Meu filho Humberto Artur:
Como estão as coisas aí em Ponta Grossa? Aqui todos bem. Tua mãe sempre se queixando da dor do lado. Tua vó está esclerosada e fica me xingando de tudo quanto é nome, mas eu já nem ligo. Antes eu brigava, queria botar a velha para a rua de casa, mas agora não ligo mais, estou passado e calejado. Eu vou indo, com a graça do bom Deus.
Te escrevo para te dizer que morreu o compadre Aristide, que trabalhou comigo. Como ele é teu padrinho, achei que tu gostaria de saber. Teve uma doença ruim – lá nele - e se finou logo. Escreve para a viúva Dona Ernestina, tua madrinha, para dar os pêsames.
Não sei se te lembras que eu contava porque convidei o Aristide para ser teu padrinho, quando tu morava aqui em Rio Grande. É porque passamos muita coisa junto. Muita coisa que eu nem te contei. Ele inclusive que escolheu o teu nome, que é composto dos nome de dois grandes presidente do Brasil: o Castelo Branco e o Costa e Silva. Eu queria botar também o Emilio, para homenagear o Garrastazu Medissi, mas ele achou que ia ficar muito comprido.
Nos bons tempos em que trabalhamos junto, o Aristide e eu, nós servimos no DOI-CODI, mas isso tu sabe. Ele era encarregado de interrogar os comunista suverssivo e eu era o que dava manivela naquelas maquininha de choque elétrico. Eu não me metia em confusão de política. O Aristide me dizia quando tinha que aumentar o choque e eu só ia fazendo o que ele dizia. Graças a Deus tenho a conciênçia limpa de não ter feito mal para ninguém na vida. Ele que amarrava os fios nos escrotos dos elementos e depois eu ficava ali, só na butuca, dando manivela.
Também tinha dia que a gente saia pra dar susto nos estudantes de madrugada. Tinha muito estudante anarquista e a gente precisava assustar senão eles acabavam virando comunista também. Nós saia de caminhão. Eu no bodoque, guiando. O Aristide descia e sentava porrada de leve nos grupinhos de moleques que ficavam nas esquinas, falando alto contra o governo, bebendo e as vez até cheirando maconha.
Uma vez nós descobrimos que o vizinho do lado andava ouvindo umas músicas do tal de Chico Buarti, que falavam mal do governo. Pois o Aristide foi lá e deu pára ti quieto no homem que ele nunca mais nem ligou o rádio. Homem de respeito, o Aristide. Nunca matou ninguém, só aleijou o Francisco Camaquã, mas assim mesmo foi por dívida de jogo. Dava os corretivos nos suverssivo sem deixar nem marca. Eles não podiam se queixar nem prô bispo.
Era um serviço que me dava gosto. O tempo dos milico, digam o que disserem, era tempo bom. Todo mundo andava na linha, não tinha essas coisas de indecência na televisão. O Brasil era um país respeitado até pelos argentinos e pelos americano. Lá em casa era uma fartura só: era arroz, era feijão, era mocotó, era abóbora com guisado todos dia na mesa e depois era rapadura, sorvete e cocacola a vontade, que tu gostava muito. Eu tomava o meu vinho Pioxi suave, que a tua mãe gostava de misturar com cocacola também. Parei no tempo do velho Gaizel - homem bom, mas veio com a abertura e aí tive que mudar de ramo, fiquei depois no SNI no serviço de datilografia.
Além do mais se não fossem os milico, Rio Grande estava a pão e água. O tal de Brizola tinha prometido deixar a cidade a pão e água. Aí eu queria ver: cadê bifê da balança? Cadê Faustão nos domingos na tevê colorida? Imagina só como não estaria a minha situação de barnabé. Nem casa na Cohab ia ter pra nós.
Dou lembranças para a Dorvelina tua esposa.
Um abraço respeitoso do velho pai que muito te ama. Tua mãe manda beijo.
Getúlio Dornelles da Silva
Glossário:
Se finou: morreu.
Humberto de Alencar Castello Branco e Arthur da Costa e Silva, Emilio Garrastazú Médici e Ernesto Geisel: quatro dos ditadores militares do Brasil.
DOI-CODI: Sigla que designou o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna, órgão repressivo da ditadura militar brasileira.
SNI: Serviço Nacional de Informações, idealizado pelo General Golbery (riogradino), para servir à ditadura militar.
Suverssivo: corruptela de subversivo.
Só na butuca: só observando.
No bodoque: na direção do automóvel.
Pára ti quieto: fazer desistir.
Milico: militar.
Pioxi: Pio XI, vinho popular.
Bifê da Balança: comida por peso.
Faustão: apresentador de televisão aos domingos.
Cohab: cooperativa habitacional de casas populares.
Barnabé: funcionário público.
12 comentários:
Que beleza!!!!!!!!!!!!!
Que tristeza!!!!!!!!!!!!!
Está linda esta missiva: inteligente, bem humorada e sutil. Um certo retrato de uma nação/profissão frustrada e frustrante.
Ao meu amigo, professor e poeta, um grande abraço.
Grande Tabajara
Estou louco para ler a carta de resposta do Hmberto Arthur. Quero conhecer este cara, saber o que deu. Está ótima. Um abraço.ZéGordo
Muito boa Taba. Me arrepio quando penso que a vida pode ter sido melhor no tempo dos "milicos".O grosso das despesas que meu pai teve com 5 filhos, foi naquele período.Ele era corretor de seguros e de imóveis em Pelotas.Todos são "doutores". Não me lembro de ter faltado nada.será que com menos liberdade o país funciona melhor? Marta Medeiros tem razão: "Melhoramos para pior".
Um abraço. Marco Brizolara
O que me assusta, hoje em dia, mais do que me assustavam propriamente aqueles dias, é o quanto ainda há de gente que, por não ter tido nenhum motivo para se preocupar pessoalmente durante a ditadura, acha que ela não foi, nem muito menos é, preocupante.
celso r.
Taba,
Os alienados estão por aí, em qualquer regime e epóca!!! Como educadores, temos muito a fazer...
Um abraço,
Lígia
adorei! adorei a parte que o pai diz que tem a consciência tranqüila, afinal, não era ele que colocava os fios nos testículos do cidadão...ele só girava a manivela pra dar choque!!! O pior é que ainda temos pessoas que pensam assim...e são muitas! O mesmo tipo de raciocínio faz quem diz que a vida era melhor no período militar...um umbigocentrismo só!!
um abração!
ahhhhhhh e concordo plenamente com o que o Celso R disse!
bacana. :)
Fico me perguntando se a globalização da economia não estaria para nós hoje como a ditadura militar estava para os livre pensadores do respectivo período... ainda temos as torturas travestidas, os que acionam o "choque"... os que juram de pés juntos sua inocência... os que acham que hoje temos liberdade... e os que continuam desaparecendo.
"Mudaram as estações... mas nada mudou..."
"Ques tempos, hein meu guri"? Sabe que é assim, contando essas coisas tristes, que a gente faz o nosso papel social, né? Não podemos deixar a história e o tempo apagar essa época de dor. Afinal, nós a vivemos, com dor, asco e ternura!
Oie Taba!!!
Adorei... pena que a ficção tenha sido uma realidade pra muitos!
Bueno enfim comentei algo por aqui.. Ando meio relapsa... Mas tudo se explica... Até meu blog descuidei, hahaha
Hj dei uma atualizada nele... vê lá a novidade! bjos
e aí, Taba? muito bom. Tô com o Celso e o Zé Gordo.
abraços
Aderbal
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