sexta-feira, março 17, 2006

Saga de um caroço

Papai foi à caça, mamãe logo vem, disse ela ao rebento que brincava entretido com um galho, pedras e a pele de um animal. Saiu do seu abrigo onde havia passado boas horas arrumando seus apetrechos domésticos. Agora tinha uma hora de folga e resolveu ir até a mata apanhar uma fruta. Não era muito arriscado. Os animais já estavam, por instinto, acostumados a ficar um tanto afastados da aldeia. Apanhou a fruta e comeu. Gostou e resolveu pegar mais uma, até que ouviu um ruído estranho e resolveu que era hora de voltar. Ao entrar na aldeia, sentou-se em uma pedra para terminar de comer sua fruta. Cuspiu o caroço no chão, tentando mirar um local escolhido.

Tempos mais tarde, sentou-se novamente naquela pedra, num desses horários de folga. Examinou o chão, lembrando-se da última vez que sentara ali e percebeu pequena planta brotando no lugar onde havia cuspido aquele caroço. Examinou a planta de perto e lembrou das folhas da árvore onde havia apanhado a fruta. O mesmo recorte, a mesma textura. Resolveu proteger a planta para ver no que ia dar.

Descobriu maravilhada que ia se desenvolvendo uma árvore igualzinha àquela que havia no meio da mata. Pensou que não iria precisar mais arriscar a vida para comer a fruta que gostava tanto. Foi o que ocorreu. Após um certo período, a pequena árvore já produzia frutos. Contou entusiasmada sua experiência ao marido. Ficou dias matutando nas possibilidades da descoberta. Imaginem se, de repente, ela pudesse trazer para o abrigo todas as frutas que necessitasse...

Muitos dias se passaram quando ela percebeu que muitos caroços daqueles, devidamente enterrados, transformavam-se em muitas árvores, com muitos frutos. Começou a experimentar com outros caroços e outros alimentos. Muitos deles se reproduziam ali mesmo, a alguns passos da morada dela. Foi tanto o acúmulo de frutas que logo ela estava com uma produção bem maior do que sua família necessitava para o consumo. Falou então com o marido sobre uma idéia que havia tido: quem sabe seus companheiros de caça não estariam interessados em levar os frutos excedentes em troca de alguma caça?

Logo o marido não saia mais para caçar. Ficava em casa cuidando das árvores, seguro, perto da família. É verdade que começou a ficar um tanto gordinho e flácido.

Não faltou muito para que os vizinhos os imitassem. Descobriram com facilidade o que era necessário fazer para terem suas próprias árvores. Logo a tribo inteira estava plantando e trocando alimentos entre si. Outras tribos vizinhas os imitaram e a troca entre as tribos tornou-se mais intensa. Foi um pequeno passo para que começassem todos a domesticar animais, alimentando-os com as frutas e vegetais que sobravam. Foi uma nova etapa quando, começaram a domesticar javalis e alimentá-los com os animais antes domesticados.

Um dia, o mais esperto membro das tribos teve a idéia de, ao invés de levar frutas para serem trocadas, levar alguns metais brilhantes que ele havia achado e que eram cobiçados por muitos, homens ou mulheres. Havia criado o dinheiro.

A estas alturas as tribos já não era mais nômades. Não conseguiam mais se mover do local devido ao novo modo de vida. E já que iriam ficar fixos em um só local poderiam construir abrigos mais fortes, mais próximos uns dos outros. E foi criada uma cidade.

Um dia, os mais políticos, estabeleceram uma regra: outros poderiam realizar tarefas para aqueles que possuiam mais alimentos guardados e ganhar alimentos em troca. Para isso era necessário guardar os alimentos bem guardados. Criaram-se guardas que protegiam os patrimônios. Como muitos não queriam voltar para a mata, com medo das feras, submeteram-se a esta regra de trabalhar pelo alimento guardado, que era entregue em forma de metais brilhantes, agora chamados moedas.

O tamanho das tribos não era mais regulado ao natural, pelo alimento disponível e pela necessidade de deslocamento, como antes. Havia agora liberdade para procriar.

Estava criada a civilização e a superpopulação.

Em seguida veio a cobiça, a ganância, a violência e outros males, pois vivendo em disputa de espaço e alimento tornaram-se agressivos, perdendo a confiança uns nos outros.

Tinham sido expulsos do paraíso e não sabiam.

O nome daquela primeira mulher era Eva, o marido dela era chamado de Adão.

Estranhos nomes para silvícolas...

13 comentários:

esperanca disse...

Eis a nossa civilização. O poder da comida trancafiada. E o pior, quando se perceberá que a coisa não está funcionando direito?
Ou: quando nos daremos conta que estamos sendo extintos enquanto acreditarmos que este é o único modo certo de se viver?

Anônimo disse...

Passei aqui.
Virei seu leitor assíduo.
Tá na hora de começar a pensar em publicar, né guri?
Abraço

Anônimo disse...

E pensar que tudo começou com um mísero caroço num instante de ócio e filosofia! Seria "outro mundo" possível se resgatássemos o elo perdido nessa trajetória?
Bjão... Tabá!

Anônimo disse...

Pois é... Se usássemos toda a nossa capacidade intelectual já nos primórdios, teríamos chegado á conclusão de que bom mesmo teria sido engolir o caroço, para que não se pudesse vê-lo crescer e desencadear o capitalismo e a superpopulação, que diga-se de passagem, são caroços difíceis de se engolir.
Ou então, se isso fosse inevitável, teríamos consciência da merda que fazemos no mundo...

Anônimo disse...

legal, gurizinho.
manda bala.

Anônimo disse...

Oi, passei por aqui e li teu blog!
Adorei como sempre...
Te cuida amigo!
Beijoooos

Anônimo disse...

Pô, de novo a Eva? A culpa não poderia ter sido do Adão desta vez?
bj
azeitona

Tabá disse...

A Eva não teve "culpa", mas teve tanta responsabilidade quanto o Adão.
É mais provável que uma mulher, que ficava no abrigo cuidando da prole, tenha feito a observação de origem da agricultura.
Quanto a São Paulo, aí já é angú de caroço...

Anônimo disse...

Leyendo la historia del caroço me inclino a pensar que la historia de nuestra especie no ha sido muy edificante, aunque tal vez contarla, no importa si con la forma de una fábulo bien humorada, nos sirva para exociarla. Será que podemos aprender a vivir de una manera verdaderamente más humana?!

Anônimo disse...

Fala Taba.
Aqui Minduim from Pelotas...
ainda de ressaca da teoria da escolha!
pragmático como rótulo de maizena, gostei da simplicidade complexa, das nossas atávicas molas propulsoras.
Além de artista gráfico, professor de design, culinarista, estou coordenando um curso de formação pedagógica no Cefet... fiquei louquinho para aplicar a dita teoria nos meus pupilos(as).
no bom (ou mau) sentido!
meu email mindubas@gmail.com.br
mantenhamos contato
puta abraço
minduim
Ah.. não conhecia o tela de ry cooder e já estou baixando algumas músicas.

Anônimo disse...

professor,gostei... e pensei, e o caroço da nossa saga (criaturas)? Também fomos cuspidos?

abraço

Anônimo disse...

Como sempre um belo texto.
Daquele caroço inicial chegamos ao angu-de-caroço de hoje.
Um abração
Altmayer

Anônimo disse...

Quem diria, Tabajara descobre-se, finalmente, um materialista dialetico! :-)

Sem querer sacanear, mas ja' sacaneando, quem quiser aprofundar o tema deve comecar com o prefacio de 1884 de Engels a sua obra "A origem da familia, da propriedade privada e do estado", que, alias, pode ser lida on-line em http://www.moreira.pro.br/textose37.htm, no sitio do Prof. Aloisio Moreira, da UFPB, onde esta' disponibilizada toda uma lista de classicos do pensamento socialista:
http://www.moreira.pro.br/classcent.htm

He, he, he.

Celso R.