segunda-feira, março 24, 2008

A Mulher de Deus

E pousará no coração da América num claro instante.

Um Índio

(Caetano Veloso)


Na universidade aprendi que, muitas vezes, é preciso alguém de fora, de outra cultura, com outra visão, que nos questione para podermos pensar melhor, para pensarmos sobre o que nunca pensamos. Às vezes é preciso alguém que pouse de uma estrela colorida e brilhante.

Foi um índio cree canadense que parou na minha frente , com seus cabelos compridos e um jeito feminino, e perguntou:

- Onde está a mulher de Deus?

Fiquei parado com a pergunta, inesperada e sem resposta.

Neste caso foi um índio canadense, da tribo dos cree, que tendo feito doutorado, escolheu a área da mitologia para desenvolver. Sua tese foi sobre a comparação das mitologias ocidental e oriental, grega e indígena. Já foi surpreendente pensar em nossas crenças religiosas como sendo apenas uma mitologia. E ele foi além. Explicou que nossa mitologia é hierárquica e masculina. Nosso ser superior é homem e ocupa o topo da importância divina. O primeiro ser que ele resolveu colocar no paraíso foi um homem, criado a partir da essência da Terra, o barro. Apenas por estar necessitado, este homem teve sua costela extraída e dela criou-se a primeira mulher, um subproduto, que veio para servir este homem necessitado. Não importa que estas figuras sejam simbólicas para os menos radicais religiosos. Esta é a mitologia preponderante na cultura ocidental. Contamos que numa época, nosso ser supremo mandou seu filho – homem – para nos salvar. Mas, a mãe do filho de Deus é imaculada. Maria é mulher carnal de José, mas não teve sexo com ele para produzir o filho de Deus, foi concebida por um espírito santo. O sexo é eliminado da mitologia divina, sendo considerado pecado.

Diferentemente, a mitologia grega estabelece casais entre os seus deuses. Zeus é esposo de Hera e assim por diante. Alguns deuses têm conjunção carnal com humanos e Hércules, por exemplo, é filho de um deus com uma humana. A mitologia ainda é hierárquica. Sexo não é pecado, pois os deuses o praticam. A mulher tem tanta importância quanto o homem.

A mitologia indígena é não-hierárquica. Todos os deuses têm a mesma importância. E os deuses são inúmeros. Deuses das árvores, da água, das pedras, masculinos, femininos ou hermafroditas, que se reúnem em um círculo. Nesta cultura, as pessoas quando morrem passam simplesmente de dentro do círculo para fora e vão fazer parte da reunião divina. Sexo não é pecado para eles, mas faz parte do processo natural, do círculo da vida. Não há a menor distinção entre homem e mulher.

E o índio analisou e escreveu sobre as conseqüências de cada mitologia sobre seus povos. Sobre o que representa a hierarquia para cada uma dessas civilizações, sobre como o poder ali se distribui, sobre o papel da mulher em cada uma delas, sobre as conseqüências do pecado, sobre o respeito pela natureza...

Até hoje estou pensando: onde está, afinal, a mulher de Deus?

4 comentários:

Unknown disse...

Não podemos esquecer que estas "histórias" são contadas também por homens, donos das histórias ocidentais, donos das decisões das histórias a serem contadas e das suas interpretações. As mulheres nem são citadas. Agora, para algumas crenças, Deus é energia, e energia não tem orientação sexual.
Abraço, criatura!

Anônimo disse...

Taba, gostei muito to texto, honesto e respeitoso. Dessa vez o que mais me chamou atenção foi o quanto usas muito bem a paisagem da academia (com muito respeito) para transmitir uma idéia. E por que será "a" o gênero da academia...? Um forte abraço. José Menna

Celso R. disse...

-- Aviso: este comentário é anormalmente extenso para os padrões dos comentários normalmente aqui postados e se volta, de modo complexo, não apenas sobre o artigo original, como, também, de forma impertinente, talvez, mas irônico-duvidosa, certamente, sobre os comentários já postados, e descarta o currículo de todos os envolvidos, principalmente o número de artigos em revistas Qualis A. Por isso, ele deve ser lido sem qualquer garantia de efeitos positivos e me declaro irresponsável (à lá Juremir-sabe-se-lá-que-bicho-é-este-Martins) por qualquer dano causado à honra, convicção ou crença de eventuais leitores, o que inclui o Dono do Blog.
-- A questão colocada é extremamente abrangente, por isso mesmo padecendo de um mal de origem e incurável, por impossível de ser atacada de modo definitivo por diversas razões. Recai, em última análise (como se dizia antigamente), nos domínios da Antropologia, ciência muito mais do que multidisciplinar, transdisciplinar, que se funda sobre elementos tão (aparentemente) diversos quanto a química dos hormônios e a semiótica dos mitos. É que no meio de tudo, está a linguagem. No princípio, era o Verbo. O Verbo, percebe? E Deus DISSE: faça-se a luz. A linguagem é a raiz de todos os bens e de todos os males. Ora, pois, estamos imersos na linguagem, ela medeia toda nossa relação com o Cosmo, e impede que conheçamos o Caos ( este é o que não pode ser descrito; tanto que, à medida que parcelas /do/ Caos vão sendo /descritas/, vão saindo do Caos e se integrando ao Cosmo) (as palavras entre barras são aquelas que careceriam de definições mais precisas do seu significado de modo a não terem questionada a propriedade do seu emprego em cada contexto; logo, devem ser tomadas com cautela semântica e pragmática).
-- Excelentemente, Matemática é linguagem. Muita coisa da Matemática /não/ /existe/ (note, minha senhora, que eu não escrevi que /não existe/: cada um tem o /seu/ quinhão de estranheza, entende?) fora de suas próprias formulações, e muita coisa /existe/ em outras dimensões da realidade e projeta certos aspectos /essenciais/ de sua /natureza/ para "dentro" das fórmulas e sentenças matemáticas. E vice-versa. Há quem defenda, mesmo (vide Vilem Flusser, UnB), que certas /coisas/ do mundo social (E ATÉ FÍSICO) só passam a /existir/ depois de adequadamente identificadas (classificadas segundo algum recorte /cognitivo/ feito por seres /observadores/). Exemplo: as pessoas antigamente não tinham /infância/, isto só passou a acontecer depois que a infância foi /inventada/, em plena modernidade, aí pelo século XVII (há dúvidas se o apelo crístico à aproximação das crianças não é um erro de tradução, ou se não está inadequadamente contextualizado hoje, quando a idéia de infância e criança estão muito arraigadas na mente de todos; seria um processo retrospectivo: /lemos/ nos Evangelhos uma [mensagem cuja estruturação simbólica foi induzida pela cultura moderna] reinterpretada pelos tempos modernos). Outro exemplo: quanto mais partículas elementares se observam "entre" os átomos, mais partículas aparecem; na verdade, elas /emergem/ de "dentro" das equações que os físicos formulam cada vez mais obsessivamente (take it easy, Maeakawa; don't want to kill me).
-- Além, disso, muito mais fundamentalmente, antes de questionar sobre uma certa "mulher de Deus", seria preciso questionar sobre o gênero de Deus. Mas como "questionar" se Deus é homem ou mulher? Primeiro: Ele assim O é por ter DITO (Ele, o Verbo) que assim é. Segundo: se é um ou é outro, é assim e pronto, ou não seria Deus (desconfio de "deuses" que oscilem quanto à sua estrutura essencial ou mesmo em seus humores conforme a conjuntura; a não ser Shiva, cuja definição é a própria oscilação, ou a dança da realidade sob eterna definição). Terceiro: quem sabe, dentre os mortais, sobre o gênero de Deus o sabe por revelação d'Ele, ora! Agora, se para uns ou umas Ele disse que era homem e para outros ou outras Ele disse que era mulher, bom, decerto, sendo Ele Deus, é isto mesmo que Ele quer: que uns O vejam como homem e outros (oh, God, ou outras) O vejam como mulher. Em sendo assim, dependendo da cultura sob observação, dependendo da linguagem usada, Deus **deveria** ser homem OU mulher. Ou homem E/OU mulher. Ou hermafrodita. Se mulher, aí poderia ter que ter um companheiro, posposto aos poderosos e insondáveis buracos negros que já o aborrecem, hoje em dia. Se homem, poderia querer ter uma companheira, situada além das majestosas e fugidias galáxias gigantes. Ou ser gay, ou celibatário convicto.
-- Ou simplesmente não, e aí se pode considerar muito inapropriada a pergunta feita pelo índio com doutorado, ou foi uma provocação, considerando ele, o índio, que iria "pegar" o Dono do Blog (e "pegou", nesse caso, pelo jeito), ou é mais uma comprovação de que a língua tudo contamina (o que vai ser tratado abaixo). Se for levado a sério, ele (o índio) está ignorando um dos atributos básicos /do/ Deus cristão ocidental hodierno (se não é d'Este que Você fala, então cancelemos tudo e recomecemos sobre outras bases, mas aí só depois do feriado), o qual deve ser, necessariamente, a solidão, derivada de Sua fundamental, radical singularidade (embora não definitiva; afinal, Ele é Deus, mas, assim, só a Ele compete qualquer consideração sobre isto). O índio com doutorado (muito provavelmente, embora eu não tenha feito nenhum t de Student sobre onde índios vão fazer doutorado) obteve seu título numa universidade construída sobre a cristã-ocidentalidade e, mesmo assim, vem com tal pergunta, que desmente sua capacidade de penetrar na cultura necessária justamente para deixar de fazê-la, apesar de ter defendido tese sobre comparação entre mitologias. Questiono a competência da banca, retroativamente à pergunta agora feita. Ou ele bebe, e foi numa hora de pilequinho, num barzinho descontraído em Vancouver que o Dono do Blog teve intercurso (verbal, minha senhora, verbal!) com ele? Nesse caso, desculpêmo-lo. Se não, a pergunta do índio deveria ser simplesmente desqualificada no mérito acadêmico-científico intrínseco, ainda mais sendo dirigida a um Doutor em Engenharia de Produção, que tem, sim, um certo tom de Engenharia Antropológica, ainda que capitalista até a raiz, isto sim, embora isto não tenha nada que ver com o assunto. A pergunta, enfim, só pode ser abordada se adequadamente posta em quarentena em confortáveis limites atropológico-culturais, como vindo de um membro de outra cultura e tateante na compreensão da nossa. Ou, salvaticamente para o índio e para nós, tratada como uma provocação para o exercício poético. Pela Poesia não só se está livre para analisar e até DIZER novas realidades, como também, ainda que sob outro código, muitas verdades, mormente em nível pragmático, mais que semântico. Nesse sentido, recomendo, muito enfaticamente, muitas doses de BORGES, Jorge L., em especial "Ficciones" e "El Aleph" (ambos têm traduções da Editora Globo); VELHO, Gabriel de Brito, especialmente "Arqueologia Provincial Fantástica"; e também, claro, Caetano.
-- Por outra, Antropologia é também linguagem. E /opera/ com a linguagem. Seria, no limite, uma /metalinguagem/ da realidade ou da nossa (humana) percepção. Como "fazer" uma Antropologia livre, então? Especialmente se se colocam questões de gênero, a língua contamina todos os raciocínios, por mais ALEATÓRIA que ela seja na fixação dos mais diversos aspectos que incorpora. No caso em particular, se a linguagem natural, a língua, o idioma, no caso o Português, é tão fortemente marcado em termos de gênero (TODOS os substantivos são ou masculinos ou femininos), COMO DIABOS vai-se falar sem ferir suscetibilidades de gênero se se admite tais suscetibilidades?? Por que se diz a panela e não *o panela? Há explicações, mas não passam por "É PORQUE A COZINHA É O LUGAR DA PANELA E A COZINHA É O LUGAR DAS MULHERES, LOGO OS HOMENS (claro, os homens, afinal eles é que inventaram a língua, nunca nenhuma mulher teve qualquer influência na determinação de qualquer categoria lingüística) DIZEM 'A PANELA' QUE É PARA LEMBRAR SEMPRE ÀS MULHERES QUE A COZINHA É O LUGAR DELAS, DAS MULHERES E DAS PANELAS". E não passam tampouco por explicar por que é que o fogão é masculino. Seria por ser aumentativo de fogo? Mas, também, por que o aumentativo é, quase sempre, tão masculino? Aliás, já que são as palavras que têm aumentativo, deveria se dizer A *aumentativa da palavra e não... Ou será porque fogo não está só na cozinha, está, principalmente, na guerra: "Fogo!", que é coisa com muita testosterona?
-- Outra hipótese, sempre possível, é eu ter desentendido tudo. Admito, mas, aí, é porque foi mal explicado.
-- Ou não, afinal há controvérsias, segundo os mais recentes incunábulos, editados para efeitos meramente estéticos e vendidos a metro.
-- Ad nauseam...

Sds, Celso R.

luisfranz disse...

Olá Taba,

Não li o último comentário por que estava muito extenso. :-))
Mas a quem interesse, tem um autor que mostra de uma forma muito interessante o motivo do surgimento das religiões e qual a sua função social. A leitura é fácil e está num capítulo do livro "Armas, germes e aço". O autor é Jared Diamond.
Acho que um boa reflexão, independente dos aspectos associados ao sexo, é sobre como uma sociedade seria sem um mínimo de crença em algo divino. A reflexão pode iniciar exatamente pensando-se numa tribo com poucos indivíduos.

Abração,

FRANZ