quinta-feira, abril 05, 2007

... E depois fui ver o Paulinho.

Semana seguinte fui ver o Paulinho da Viola. O mundo é bom, a felicidade até existe...

Antes do show encontrei o Nelson Coelho de Castro. Para quem não conhece, é um compositor e cantor gaúcho, com vários Cds gravados, de quem sou fã de carteirinha. Ela já esteve no Programa Metamorfose, por isso nos conhecemos. Nelson estava visivelmente entusiasmado e excitado com a expectativa do que estava para vir.

Entram os acompanhantes: um tecladista, um baterista, um flautista e clarinetista, um baixista, um percussionista e um violonista.

Paulinho entra em seguida, tímido e modesto.
Paulinho parece um preto-velho, cabeça totalmente branca.
Paulinho tem o sorriso ingênuo de uma criança, de uma simpatia irresistível. Todos querem ser seus amigos.
Paulinho tem os olhos tristes, de farol baixo.
Paulinho não existe de verdade, ele foi morrendo como pessoa e se transformando num ectoplasma musical.
Paulinho é obsessivo. Disfarça seu lado João Gilberto, diz placidamente que o som precisa melhorar e que há uma superposição dos violões, o que apenas ele percebe.
Paulinho canta canções tristes, que falam de decepção, de desesperança, coerentes com o olhar cabisbaixo que sustenta.

Um verso sobre a solidão é terrível: “Sorri seus dentes de chumbo”.

Seus versos são inspirados, mas não são sempre geniais. Sua música é genial, juntamente com a interpretação. Às vezes, parece que sua obsessão musical faz com que ele persiga a mesma melodia, para aperfeiçoá-la, justo como faz o outro obsessivo João Gilberto. Fico surpreso quando ele anuncia uma melodia muito diferente e ela me parece como outras que ele compõe. Talvez eu não consiga captar a diferença. Talvez seja a síndrome da cerimônia do chá: no Japão a cerimônia é repetida eternamente, porque os japoneses querem encontrar a cerimônia perfeita. No entanto, outra melodia (Roendo as Unhas), despretensiosamente apresentada, desmente que ele se repita, é dissonante, indisciplinada e professa: “Meu samba não se importa que eu desapareça”...

Paulinho conversa bastante com o público, sempre timidamente, como quem pede licença e teme estar chateando. Mas sente o dever de promover seus parceiros, contando histórias que os enaltecem. Tece loas a Cartola. Fala da parceria recente (e surpreendente para ele) com Arnaldo Antunes. Conta de sua amizade com Marisa Monte, estendida pela amizade com Carlos Monte, pai dela. Quando fala do seu pai César Faria, demonstra respeito e admiração, denunciando uma educação à moda antiga. Mas quando fala do filho, o violonista presente no palco João Rabello, esforça-se para deixar a modéstia de lado e dizer que tem orgulho de viajar com ele. Em seguida o garoto faz um solo de violão onde demonstra ter mais dedos do que o normal. De fazer Yamandú Costa titubear. Penso que esta geração nova tem uma habilidade técnica fantástica. Ao mesmo tempo falta-lhes a emoção do mestre Baden Powell. Quando Paulinho toca é evidente a inferioridade técnica de seu violão em comparação com seu filho, em compensação fica também evidente que o rapaz precisa muita estrada de maturidade para colocar emoção na sua música. Paulinho ganha. Mesmo assim, compro o CD do João Rabello na saída.

Há um momento de choro instrumental, onde Paulinho fica sendo o cavaquinho de apoio e os outros músicos brilham, sobretudo o clarinetista.

Confessou que começou a tocar cavaquinho por necessidade, já que o pai era um exímio violonista e não tinha espaço para outro, mas que tocar cavaquinho era muito chato e difícil. Logo depois ele fala com o cavaquinho e pede desculpas, dando um beijo nele. Pois não é que o diabo do instrumento ficou zangado e, no meio dum chorinho, rebentou, explodiu, uma corda e deixou o Paulinho na mão?! Ele pergunta: “O que é que eu vou fazer com você?”... E passa a tocar violão. Depois, no bis tradicional, ele volta e diz que vai emendar a corda rebentada. “Vocês já viram um artista trocando corda de instrumento em público?”, pergunta ele, calmamente, enquanto emenda a corda. Esta cena demonstra sua paciência e obsessão. O melhor é que o público espera também pacientemente em silêncio. Maravilha de momento. Ele é sensível ao comportamento do público e o bis se torna um acontecimento. Aí desfilam os velhos sucessos, o público canta timidamente, mais apreciando, degustando a sua voz de veludo. Ele se entusiasma e começa a demonstrar euforia, mesmo com os olhos de farol baixo. O que denuncia a euforia é a respiração, agora mais alta no tórax. Ele está inflado. Confessou que poderia ficar tocando ali o resto da noite. Ele está feliz e nós estamos felizes. A felicidade até existe mesmo.

O show termina com o público cantando um atravessado “parabéns a você” para o percussionista aniversariante, que está radiante.

Na saída revejo, por coincidência, o Nelson Coelho de Castro. Eu o olho e digo que aquele sujeito é pura música! Ele não consegue falar. Bate no peito como se quisesse destrancar as palavras. O gesto é suficiente para eu entender que o homem pode ter um ataque cardíaco.

Na saída, num táxi, rolam músicas da Queliqui e Claudinhoebochecha. Nem tudo pode ser perfeito...

6 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Tabá

Há tempos eu não aparecia mas a música, como sempre, foi um convite irresistível. Também sou fã de carteirinha dos dois mitos que viste em ação, muito embora meu processo de exclusão dos dois fã-clubes (com perda da carteirinha e tudo) deva estar em pleno andamento depois que não compareci a essas apresentações. Que fazer? É a "Roda Viva" que vive chegando e carregando a gente prá lá e prá cá.

Mas, graças ao teu texto, mesmo não estando presente, pude sentir um pouco do gostinho que é estar ali, em frente ao seu mito / ídolo / ... Lembrei-me de algumas vezes que tive esse raro prazer e, principalmente, pude reviver essas emoções que são despertadas numa situação dessas. Lembrei em especial quatro delas: quando assisti ao show da Mercedes Sosa numa Fenadoce, em Pelotas, há muitos anos atrás; quando vi o Stomp na minha primeira vez no Teatro do Sesi e, mais recente (ano passado e retrasado) quando assisti a duas cantoras portuguesas simplesmente expetaculares, a Dulce Pontes com seu grupo e a Teresa Salgueiro com seu Madredeus.

Indescritível é a única palavra que me ocorre no momento para tentar dar uma pálida idéia do que foi estar lá em cada uma dessas apresentações. Há um turbilhão de emoções que afloram e que nos deixam sensibilizados bem acima do normal do dia-à-dia, às vezes muito tempo depois do evento. Quem sabe isso não é o "belo" de que nos falam os entendidos em arte, capaz de nos comover às lágrimas?

É por isso que, ao concordar com tudo o que disseste nos dois textos, queria apenas levantar uma dúvida sobre o fato de tentares ir "neutro" para um encontro desses: será que isso - o encontro com o "mito" - também não faz parte do processo? Não ajuda a mexer ainda mais fundo com a gente? Tudo bem, um crítico tem que, pelo menos, tentar ser o mais isento possível, mas, sinceramente, nessas horas eu nem me preocupei em analisar nada, queria apenas sentir, vibrar, me deliciar com o que eu sabia que viria. É estranho mas parece que uma força desconhecida envolve a todos que ali estão e aí é como se fizéssemos parte de uma mesma irmandade, todos como que "flutuando" com a beleza da arte que nos é apresentada, uma espécie de devaneio coletivo, como se estivéssemos todos "loucos de cara", como dizia o Ramil. É um porre de sentimentos e emoções! Acho que a idéia de neutralidade, além de difícil na prática, poderia atrapalhar um pouco esse deleite, pelo menos no que me diz respeito. Para ti, não? Sei que cada um é diferente, o que é, diga-se de passagem, muito bom. Daí que não quero de modo algum impor um jeito de ver um mito em ação (o meu jeito). Queria apenas te dizer que vibrei com as tuas experiências porque, além de poder sentir tua satisfação, me permitiste relembrar novamente as minhas próprias experiências. Mas, como tudo tem um lado ruim também, este relembrar me fez escrever dez vezes mais do que pretendia, tranformando o que era para ser apenas um texto rápido de Feliz Páscoa para ti e a patroa nesse texto tipo "adaga" - cumprido e chato. De qualquer forma o Feliz Páscoa segue válido.

Abraços

Eduardo (Duda) Carvalho Pereira

Tabá disse...

Duda:

Inveja desavergonhada de não ter visto a Mercedes Sosa, a Teresa Salgueiro e a Dulce Pontes. Eu quero tudo. Falta tempo, oportunidade e informação... dinheiro a gente TEM que arranjar para estas coisas...

Quanto à história de ir neutro, isto vem com a minha iconoclastia, que vem da minha vaidade pessoal, que vem também das minhas convicções políticas e sociais. Os artistas são humanos e eu, em princípio duvido que eles sejam tudo aquilo que eu imagino. Eles têm sempre que me provar que são o que eu penso. Assim penso dos governos.

Não vou gostando por antecedência, até porque preciso dar uma chance ao artista. Senão parece aquela piada em que o cara deixa cair a bandeja e todo mundo sai dançando. Deixo que ele me convença, que é exatamente o que ele quer.

Ainda: quero estar atento para informar ao artista (ou ao governo) que a sua arte está decaindo, se for o caso. Acredito que isto o ajudará a melhorar. O que virá também eu meu próprio benefício. E dos outros. Não necessariamente nesta ordem, mas numa mistura.

E os textos só são compridos e chatos, como adaga, quando são desinteressantes e desinteligentes - o que não é caso para os teus escritos.

Anônimo disse...

Olá Taba,

Poxa cara, teu relato do show deixa a gente emocionado!
Poderias ter suprimido o final...quebraste o meu encanto....rsss

Malaquias (Tucuruí-PA)

Anônimo disse...

Lindo!!
Gostei do teu comentário sobre o show do Chico também.
Não sou muito chegada em Paulinho da Viola, mas pela tua descrição o show foi maravilhoso

bjsss meu narrador favorito =)

Anônimo disse...

Taba... quando comentei deparar-me com discordâncias em relação à algumas percepções tuas acerca do Chico, referia-me a sentimentos e impressões que necessariamente não os mesmos que os teus, mas nada que tenhamos que teorizar... intuições, sentimentos, inferêcias, olhar e vibração de lugares diferentes em nível tempo-espaço, isto apenas. Assim como pude ver o Chico através dos teus olhos e coração, vi agora o Paulinho. Valeu!
Um beijo no teu coração!

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom