sexta-feira, abril 07, 2006

Forrest Gump Revisitado (1)

Cena 01: Minha mãe na cozinha com minha avó, enrolando docinhos de leite condensado. A mesa da cozinha cheia de salgadinhos que eu, infelizmente, não tinha altura para alcançar. No dia seguinte eu estaria fazendo cinco aninhos. Elas preparavam a festa para mim. Eu ansioso, já pensando nos presentes. O rádio ligado, certamente para ouvir boleros e sambas-canções, que minha mãe sabia de cor e cantava junto. De repente, um boletim em edição extraordinária interrompe a todos. Não entendo a notícia, mas é grave, minha mãe e minha avó começam a chorar desesperadamente, quase como gritando de dor. Não entendo como minha festa de aniversário poderia ficar atrás de qualquer notícia, por pior que fosse. Pior, logo em seguida minha mãe, com jeito e soluçando, vem me dizer que no dia seguinte não haveria mais festa. Era o dia 24 de agosto. Getúlio Vargas havia dado um tiro no coração.

Cena 02: Estou sentado no corredor da minha casa, tenho quase certeza que era o Nestor que estava comigo. Falamos de ir ao centro, dar um passeio, como os adolescentes costumavam fazer naquela hora, quando já haviam estudado e feito os temas. Alguém chega com uma cara de susto e nos avisa: “Não saiam de casa agora. O exército está na rua com tanques”. Ficamos ali parados, no corredor, sem saber se acreditávamos ou não, sem saber em que isso nos afetaria. O colégio seria suspenso? A gente não poderia mais ir ao cinema nos fins de semana sem correr perigo? Pouco depois vimos pelotões armados passar na nossa rua. O golpe militar de 64 havia estourado.

Cena 03: Naquele tempo nós, Roberto, Alemão e eu, saíamos de madrugada, em conversas que o Roberto, culto que era, chamava de “peripatéticas”. Só mais tarde fui saber que essa palavra se referia ao modo como Aristóteles, o filósofo grego, ensinava: caminhando. Em nossas caminhadas discutíamos de tudo, desde o sentido da vida até marcas de cerveja. Uma noite, nossa inocente caminhada foi bruscamente interrompida por um caminhão cheio de soldados armados de fuzis e metralhadoras, que nos encostaram numa parede, revistaram nossos bolsos e nos inquiriram rispidamente sobre o que estávamos fazendo aquela hora na rua. Como nossos pais. Um deles, revistando os meus bolsos encontrou um objeto suspeito que o fez recuar e apontar a arma dizendo que eu tirasse lentamente o objeto do bolso, o que fiz obedientemente. Um perigoso e subversivo par de óculos escuros foi apresentado. Fomos liberados. A ditadura estava no auge.

Cena 04: Chego na casa de um amigo que era mais abastado, porque o pai era dono da padaria da esquina. Isso lhe permitia a ter toca-discos ou “eletrola” e comprar novidades em compactos de vinil. Ele me pergunta se eu já tinha ouvido aquela música, e coloca um compacto a tocar. Num determinado ponto da canção o falsete entrava forte. Os vocais eram muito femininos, mas os cantores eram homens! Fico chocado e ao mesmo fascinado pela ousadia. Meu Deus! Que descoberta! Aquilo era diferente de tudo que eu já havia ouvido, era melódico e também rebelde, inconformado, revolucionário. O problema imediato era saber que meu pai não iria aceitar que eu ouvisse aquilo, estaria, certamente, fora de seus padrões de bons costumes. Muito tempo esperei até poder levar aquele compacto para casa. Era “I should have known better” dos Beatles.

Cena 05: Passeávamos, os três inseparáveis amigos, como sempre, certamente discutindo o último LP dos Beatles, decifrando suas mensagens ocultas, que só nós entendíamos e o resto do mundo ignorava. Uma hora, vimos que, na Confeitaria Abelha, todos estavam grudados numa televisão preto-e-branco colocada no alto. Paramos para ver do que se tratava. Tinha uma imagem borrada aparecendo. Deu para ouvir, então, o narrador dizendo que o homem acabava de pisar na Lua. Não demos muita importância. O último LP dos Beatles era melhor.

12 comentários:

Anônimo disse...

Que bom, cara! Como nossa vida foi parecida. Temos um ano, ano e pouco de diferença de idade. Com quatro anos, uma manchete no jornal "Diário de minas" fez com que eu descobrisse (nem eu sabia) que já conseguia ler. A manchete "Café Filho assume" lida em voz alta para o meu pai, fez ele arregalar os olhos e chamar a minha mãe: "- Maria, esse menino sabe ler!".
Golpe militar, Beatles, Armstrong pisando na lua,tudo isso, fez parte de nossa geração, né?
E agora ficamos aqui, ruminando saudades...
Grande abraço!

Anônimo disse...

Olá Tabajara, como de costume tu retratas com muita emoçao teus posts!!!
Lendo tuas cenas fiquei imaginando os episodios desse teu momento de vida e pensei...se nao tivessemos pessoas proximas que viveram esse triste periodo da nossa historia, poderia dizer que estavas contando um filme de ficcçao.
Obrigada por agraciar nossa vida com teus depoimentos.
Bom final de semana
Um abraço

Anônimo disse...

Tua crônica me remete ao princípio básico de que a identidade se faz da inter-relação "eu e minhas circunstâncias". Quanto de subjetividade e quanto de contexto vivemos e processamos para sermos o que somos... E o interessante é que "lançando-nos" a partir de cada detalhe ínfimo na constituição da realidade, sendo afetados e (ainda acredito pq PRECISO ACREDITAR) intervindo na mesma. Parece que o teatro já está inspirando tua "escritura". Um abraço especial.

Anônimo disse...

Li os 3 últimos posts na corrida, como quem bebe água sedento. Marcante a descrição da ditadura. Muito bom.

Anônimo disse...

Tabá. Com muita satisfação descobri o teu "blog" neste fim-de-semana, através do Orkut. E já adicionei aos meus favoritos. Permite que eu declare aqui a minha admiração por ti e te mande um grande e saudoso abraço. Aprecio muito os teus escritos e agora terei oportunidade de lê-los sempre.

Anônimo disse...

Taba,

Me dás a impressão que vives momentos mágicos relembrando o que se passou na tua vida. Comigo já é diferente, pouca coisa me lembro, sempre digo meu HD tem puco espaço de armazenamento.Uma curiosidade: descreves com muita intensidade estes instantes. Naquela época tinhas toda consciência disso?
Malaquias

Anônimo disse...

Oi Taba, prá variar passei por aqui...
É estranho quando vejo alguém contar estes epsódios... Sempre lembro das coisas que a mãe me contou... Engraçado como estes fatos marcam as pessoas... Na minha vó sempre percebo o impacto dos tempos de crise das guerras, onde a falta de mantimentos era uma preocupação. Até hoje ela guarda enlatados em excesso esparramados por toda casa, heheheh
Resquícios de medos do passado...
beijooos

Karen Lose disse...

Adorei!

Anônimo disse...

Adorei Forest revisitado!!! Também, claro, lembrei-me de muita coisa minha. Em qualquer caso é pensar de novo nessas relações tão cheias de sentido, embora dissonantes, da História com maiúscula e a história pessoal. O macro mundo e o nosso pequeno mundo dialogando, os que agora somos na busca do tempo perdido. Toda pessoa tem uma narrativa de vida que continuamente refaz, mas nem sempre conta. Então, continua com as memórias, por gentileza!

Anônimo disse...

Muito bom!
Tal como no Forrest Gump, eu seria uma daquelas pessoas que te acompanhariam, ouvindo tuas histórias. Muito visual tua narrativa... Adorei!

Anônimo disse...

Algumas historias legais! Deste maneira posso conhecer uma personalidade do Tabajara diferente, mais cedo na vida, fazendo descobrimentos grandes e importantes! Nao o conheci nesta altura, mas todas as experiencias fazem o homem que conheco hoje!

Da tua irma e amiga inglesa

Xanxa

Anônimo disse...

Assim, oh! "A nível de Forrest Gump", super massa o teu texto. Eu nem era nascido quando o Gegê morreu, tá ligado. E quando houve o Golpe, bah! eu nem era alfabetizado, meu! Mas me lembro de houvir num rádio de válvulas (pqp, me denunciei, meu!)quando o Castello Branco caiu com avião e tudo e...mooooorreu! Acho que era férias de julho e eu estava na casa dos meus tios, na Campanha, em Santana do Livramento. Só sei que a minha mãe, minha avó e minha tia, que tinham medo de Revolução e do Brizola, e naquele momento da notícia estavam ouvindo a novela da Farroupilha, entraram em pânico.
Eu não entendi nada! Nunca tive medo de Revolução! E achava o Brizola um fdp, porque a minha mãe tinha ficado mais de seis meses sem receber o salário de professora do Estado. Ah, tinha o Meneghetti, que rimava com Grapetti. Ah, antes disso também teve aquele da Vassoura! O Jânio! Isso mesmo, achava um barato o tal apelo da vassoura. Meu pai tinha ganho de alguém uma vassourinha dourada dentro de uma ampola de injeção. Bem pequena. Lembras disso? Pô meu, que viagem...Depois tinha aquele negócio de Comunista. Uma vez a minha mãe (que também tinha medo de Comunista!)me mostrou um Comunista (Rio Grande tinha um monte de Comunista...). Achei-o muito estranho. Era muito branco, com pouco cabelo e todo branco, assim, do tipo de Heinstheim.Mas era real...Anos depois vim a saber de quem se tratava: Capitão Athaydes Rodrigues, que foi vereador muito tempo, e a quem depois de adulto admirei muito. Muito legal fazer essas conexões de acontecimentos - tempo - história. Um abraço.