
Há uma história em quadrinhos em que o Spirit anda perseguindo um bandido na volta de um grande edifício. Eisner, cinematográfico, corta a cena de ação e mostra o interior de um escritório, onde um empresário caçador de talentos, arrogante, fumando um grande charuto, recebe um modesto e encolhido candidato. O empresário está muito ocupado para prestar atenção naquela figura minúscula e tímida. Que talento teria tal pessoa? Por que perderia seu tempo com ele? O homenzinho, depois de algumas tentativas, consegue dizer que sabe voar, mas o empresário ri dele e despreza a informação, indo logo atender outro chamado ao telefone. O homenzinho então resolve subir no parapeito da janela e se lançar. Ele dá algumas voltas em torno do edifício, voando sorridente e feliz. Mas o empresário está ao telefone, de costas para a janela e não vê o vôo. Enquanto isso, o Spirit começa a trocar tiros com o ladrão perseguido. Um dos tiros acerta então o homenzinho, que se estatela ao chão. É então que o empresário chega à janela e constata que o homem está esborrachado na calçada e lamenta o nível de loucura que o ser humano pode alcançar. Ninguém jamais soube do talento do homenzinho.
Moral da história: um amigo me ensinou a expressão “ouro enterrado”. Ouro enterrado não tem valor algum. Já contei esta história para diversas pessoas que enterram seus poemas e escritos nas gavetas de seus quartos. Por modéstia e timidez, escondem seus talentos. Querem ser descobertas à força. Talvez imaginem que, numa batida policial à caça de drogas, um policial sensível abra suas gavetas e, deslumbrado, resolva correr até uma editora e obrigar o editor a publicar aqueles poemas que irão mudar o mundo. Pura ficção. Os talentos têm que ser expostos e propagandeados. Senão, valerão tanto quanto ouro enterrado. Não há espaço para modéstia radical neste mundo. Fico surpreso de saber quantas pessoas exercem atividades artísticas para si, desenham, escrevem poemas e contos, cantam, pintam, fotografam, fazendo tudo às escondidas. Para estas pessoas há que se dizer que, infelizmente, todos estão muito ocupados, cuidando de si próprios e que, se ela quiser um pouco de atenção, vai ter que arriscar incomodar os outros, chamar-lhes a atenção, submeter-se a criticas, tolerar o descaso. O talento por si só não é suficiente para despertar o outro. Grandes e conhecidos talentos, como os Beatles ou Chico Buarque ou Bob Dylan ou Fernanda Montenegro, podem contar histórias de luta em início de carreira, histórias de falta de reconhecimento e frustração, que, ao invés de assustar ou servir de desestímulo, deveriam significar que não se alcança o reconhecimento sem batalha.
Algumas expressões artísticas foram muito facilitadas para quem tem acesso à Internet. Quase todas. Poemas e textos podem ser publicados em blogs, sem depender de editores ocupados, desatenciosos e arrogantes. Cantos, danças, cinema e atuações teatrais podem ser filmados e postados na Rede. Não há mais muita desculpa.
Aguardo novas manifestações dos talentos enterrados.
3 comentários:
Sou fã do Spirit e do Will Eisner, e também acho a história do homem voador fantástica!
Outra vantagem de se usar a internet para desenterrar o ouro nosso de cada dia, é a impossibildade da bala perdida...
Teu texto fez pensar em mim...
Tem sentido.
Penso que além dos aspectos que colocas, porque vivo esta experiência,antes mesmo de "desenterrarmos o tesouro" ou "voarmos"... precisamos arrumar tempo para aglutinar estas preciosidades ou ensaiar as asas. Acho que tô neste momento em relação aos meus escritos, se bem que também já fui ousada em algum vôo.
Bjão
Não há mais desculpas, realmente existem meios, mas existem algumas coisas que acabam nublando a visão empreendedora, de todos os modos as informações ou grandes dicas um dia chegam aos mais cegos talentos e o grande salto, ou um pequeno salto vai depender da compreenssão, dos créditos ou mesmo de um dia em que valorizamos a luz que chega de uma direção inusitada ou simplória.
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